sábado, 5 de maio de 2012

O medo do vir a ser

Muito me inquieta quando em uma conversa o discurso é repleto de saudosismo. Verdade ou não é que os idosos costumeiramente dizem que as coisas eram muito diferentes antigamente. Claro que eram, tudo muda! Só de pensar que poderíamos ter sido amebas, quem dirá o tamanho e sabor do Big Mac.

Longe de uma análise superficial, o que me inquieta não são os sintomas, mas as motivações que são com rastros de histórias subordinadas à lembranças de carga afetiva. Não ignoro o fato que a proximidade da finitude da vida faz florir sem controle o passado, afinal é ele que dará sentido ao fim que está por vir. Mas não é exatamente essa a minha questão. A angústia não se manifesta somente na certeza do fim, mas também na incerteza do que está por vir. Isso talvez explicaria o discurso saudosista de um adolescente, cujo a morte é distante e incompreensível.

Embora nem todas as teorias da psicologia admitem o passado como objeto de estudo, também não negam que existe nele uma força que, mesmo conhecido, é sustentado pelo seu mistério.

A psicanálise entende que a força do que passou irá subordinar o que virá. Acreditamos que o tempo e as lembranças são o que tornar-se-á, e a isso chamamos de memória.
O tempo, inclusive, também é subordinado a lembranças, aliás o tempo se confunde com ela.

Ouso até dizer que a felicidade é prisioneira expectadora do tempo, não só a felicidade, mas também a angústia.  Sem a lembrança, a ansiedade não tem sentido, bem como os sonhos.

Ora, por que falar de tempo? Lembranças? Perceba se não é a memória a força propulsora que molda a nossa identidade. É o que passou, o que vivemos e experimentamos que nos define. O que carregamos, pode, em grande parte, ser o que evitamos.
O fato, amigos leitores, é que nós somos frutos da construção da memória. Portanto, o que nós produzimos também o somos. O que se manifesta no tangível tem a concretude da subjetividade ao longo da história, e, sem menos, a subjetividade também é consequência da memória.

Que força e essa que me permite escrever e você ler se não a memória?

Vivemos o hoje, assumimos seus conflitos, que só existe, porque houve um passado que se perpetua por meio da memória. Se tememos o futuro, se ele nos pune sem ao menos existir, é porque ali reside a memória.

O que faz o futuro ameaçador se não a ideia de ser um passado em potencial?

Por isso o que carregamos, em grande parte, será o que iremos fugir. Seria então a memória causadora das neuroses?

Se os neuróticos sofrem de reminiscências, como diria Freud, a sanidade psíquica bem que se deve, em alguma coisa, alimentar-se do esquecimento.

E por que seria o esquecimento e não a memória o antídoto tranquilizador de nossas neuroses? É o meu passado que me assusta no futuro. O medo de repeti-lo. O desvio que eu mesmo construí me acompanha, e torna-se conteúdo que se configuram em projeções mnêmicas.

O prazer está justamente em transgredir o futuro, dizendo a ele: você não me pegou! Fui mais esperto que você! Mas isso é possível? Sim, talvez. Pergunte ao seu passado.


Gustavo Trevisan.
  

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Considerações sobre religião e a cultura do hiperconsumo


Percebe-se que o discurso religioso sofreu consideráveis transformações por conta da atual cultura do consumo. As mutações culturais advindas da “pós-modernidade” não deixaram ilesas as manifestações religiosas populares, bem como seu novo modelo teológico.  O paradigma religioso contemporâneo acompanha as atuais características sociais de relação Eu/outro, relacionados ao imediatismo, superficialidade, obrigação do gozo e do prazer continuo.

Não é difícil perceber que o ser humano se destitui da condição de sujeito para a condição de objeto.  O que faz dele objeto, é justamente a impossibilidade de escapar deste ciclo produtivo, que tem como característica o movimento de oferecer para receber.  As relações, seja ela com Deus ou com o Outro, são marcadas pela barganha, ou seja, eu recebo da mesma medida que eu dou.

A nova era do capitalismo é condição preponderante para entendermos a condição atual do psiquismo humano e da sociedade. Pouco a pouco, o espírito de consumo conseguiu infiltrar-se até nas relações com a família e a religião, com a política e o sindicalismo, e, sobretudo com a cultura.

Segundo Lipovetsky (2007) ultrapassamos a era do consumo para a era do hiperconsumo.  Neste quadro, verifica-se um grande e terrível paradoxo. O hiperconsumidor de um lado afirma que é um consumidor informado e “livre”, que vê seu leque de escolhas ampliar-se, que consulta portais e comparadores de preços, aproveita as grandes promoções, age sempre procurando otimizar a relação qualidade/preço. Do outro, os modos de vida, os prazeres e os gostos mostram-se cada vez mais sobre dependências do sistema mercantil, portanto, tenho que ter para ser.

O hiperconsumidor não está mais apenas ávido de bem estar material, preocupado com a funcionalidade e benefícios do produto, ele aparece como solicitante de conforto psíquico. O produto para ser bom é obrigado causar sensações de bem estar, felicidade e sabedoria. 

A civilização consumista se caracteriza pelas aspirações de bem estar e pela busca de uma vida melhor para si mesmo e os seus. Existe uma forte idéia de que se vive mais e melhor beneficiando-se com melhores condições materiais. O ascetismo cedeu lugar ao hedonismo.

As publicidades tendem a associar todo e qualquer produto ao gozo no aqui e agora. São criadas necessidades que impulsionam o indivíduo a dialética de ter para pertencer. O indivíduo é cercado de parafernália de produtos dispostos a facilitar sua vida, e, ao mesmo tempo, a promessa de dar com extrema rapidez o que sem o produto nunca foi possível. Em suma, a felicidade é agora o grande projeto de marketing.

Se o indivíduo adquire um produto ele está em iguais condições com o outro que também adquiriu. A igualdade perpassa pela condição de ter, em outras palavras, não existe a possibilidade de escapar desta avalanche, se o indivíduo não tem, ele está fora das normas, está desatualizado e desassociado à modernidade. A exclusão e a inclusão relacionam-se com a possibilidade de posse.  Subjacente a isso, percebe-se a existência de um pedido latente de emancipação, sublinhando a igualdade de todos perante a lei, mais a cultura do consumo acentua a diferença.

O bem estar, o prazer e o gozo imediato da sociedade contemporânea estão associados ao exercício contínuo de afastamento do desconforto e do sofrimento. O sofrimento é encarado como estranho ao humano, algo que precisa ser destruído imediatamente, não há espaço para o sofrimento onde reina a satisfação imediata.  A subjetividade dá lugar a objetividade. O bem estar é adquirido e não mais construído respondendo as elaborações dos conflitos, mesmo porque, não há também espaço para conflitos. Segundo Roudinesco (2000), esta sociedade passou da era do confronto para a era da evitação.

Isto explica o motivo do tamanho crescimento das substancias psicotrópicas. Receitados tanto por clínicos gerais quanto pelos especialistas em psicopatologia, os psicotrópicos têm o efeito de normalizar o comportamento e eliminar os sintomas mais dolorosos do sofrimento psíquico, sem lhes buscar significação.

Daí uma concepção da norma e da patologia que repousa num principio intangível: todo individuo tem o direito e, portanto, o dever de não mais manifestar sofrimento, de não mais se entusiasmar com o menor ideal que não seja o pacifismo ou o da moral humanitária. Em conseqüência disso, o ódio ao outro tornou-se sub-reptício, perverso, e ainda mais temível por assumir a mascara da dedicação da vítima. Se o ódio pelo outro, é inicialmente, o ódio a si mesmo, ele repousa, como todo masoquismo, na negação imaginária da alteridade. (Roudinesco, 2000: 9)

O hiperconsumo não permite prestar tempo para dar significado ao sofrimento.  Quanto mais rápido o indivíduo se livra do sofrimento mais ele está disposto a alimentar o consumismo.  O próprio sofrimento se torna objeto do hiperconsumo.

Não surpreende, portanto, que o sofrimento que fingimos exorcizar retorne de maneira fulminante no campo das relações sociais e afetivas: recurso ao irracional, das pequenas diferenças, valorização do vazio e da estupidez etc. 

Vale ressaltar que a angústia e os conflitos são inerentes ao ser humano, quanto mais se evita e se recalca tais sentimentos, mais ele se tornará feroz e tenderá a se manifestar de maneira disfarçada para limitar a liberdade e o direito de escolha do indivíduo. O sujeito passa a ser, portanto, presa fácil deste ciclo – buscar soluções rápidas e eficazes para não sofrer, e como o sofrimento é inerente, a busca ganha ainda mais força.

A construção do relacionamento também não escapa do imediatismo. Os indivíduos utilizam dos mesmos critérios de rapidez e superficialidade ao constituir relações como o externo.  Na mesma rapidez de que se constrói também se dissolve, basta apenas um clique para que o outro não faça mais parte da minha rede de relações. 

Bauman (2008) inclusive sugere a alteração do termo relações sociais para ralações plugadas, ou seja, o contato é cada vez mais virtualizado, a instantaneidade dos acontecimentos trasbordam os fatos e invadem as relações humanas.


A Espiritualidade Consumista 

É evidente que o neopentecostalismo não escapa das características da sociedade contemporânea citada acima. O hiperconsumo se faz presente no que há de essencial neste modelo religioso. De certa maneira, as instituições religiosas se servem destas consequências para agregar novos adeptos. É possível identificar nos discursos a mesma característica das relações pós-modernas. São recheados de manifestações contrárias ao sistema, entretanto, não abrem mão dele para ganhar poder e crescer em quantidade de membros.

Segundo Lipovetsky (2007), a religião não constitui mais um contra poder no avanço do consumo no mundo. A diferença do passado, a Igreja não alega mais a noção de pecado mortal, não exalta mais nem o sacrifício e nem a renúncia. A idéia de prazer e de desejo estão cada vez menos assoado a tentação, a necessidade de carregar a cruz na terra desapareceu. De uma religião centrada na salvação no além, o neopentecostalismo trouxe uma religião a serviço da felicidade intramundana, enfatizando a realização pessoal. O universo do hiperconsumo não foi o túmulo da religião, mas o instrumento de sua adaptação à civilização moderna da felicidade terrestre.
A esse respeito Lipovetsky diz que:

Quando uma concepção intramundana e subjetiva de salvação domina, cresce paralelamente a mercantilização das atividades religiosas e pararreligiosas, tendo os indivíduos necessidade de encontrar no exterior meios para consolidar seu universo de sentido, que a religião institucional já não consegue construir (...). Eis que a espiritualidade tornou-se mercado de massa, produto a ser comercializado, setor a ser gerido e promovido. O que constituía uma barreira à explosão da mercadoria metaformoseou-se em uma alavanca de seu alargamento. (Lipovetsky, 2007: 131)

O discurso religioso vem de encontro com as necessidades contemporâneas. As necessidades básicas e cotidianas são perfeitamente solucionadas através da fé. Saúde, um bom trabalho, dinheiro e bons relacionamentos são disponibilizados ao sujeito na mesma medida que ele, através da fé, se entrega a Deus.  Neste discurso, não há lugar para o sofrimento, se isto ocorre, é porque o fiel está distante de Deus. Se qualquer tipo de moléstia o atinge, é porque ele não tem a presença de Deus em sua vida. 

As dificuldades, angústias e sofrimentos são encaradas como ações demoníacas. O indivíduo que está desempregado, com problemas de saúde ou coisas parecidas, são aqueles que estão sob influências demoníacas, cabe a este, se dirigir a uma das instituições religiosas para reverter este quadro. O milagre acontece independentemente do problema se o individuo se presta a seguir o Deus apresentado pela  instituições.  Que em alguns casos, cabe ao indivíduo contribuir financeiramente para pertencer aos agraciados por Deus.
Percebe-se que o paradigma apresentado é muito simples e também muito rápido. Basta obedecer o esquema apresentado pela instituição, e, em um passe de mágica, sua vida se transforma. As maldições se transformam em bênçãos, a miséria se transforma em prosperidade. A solução para a felicidade se apresenta de forma rápida, concreta e visível para que todos percebam.
O que acontece em um indivíduo se ele não encontra a cura e a prosperidade? Só existe uma explicação: A falta de fé. Esta falta de fé faz com que o demônio se aproxime desta pessoa, dando a ela sofrimento e dificuldades. Diante deste quadro cabe ao fiel buscar Deus com maior intensidade, renunciar o profano e aderir ao sagrado em tudo.  O indivíduo entra em um movimento de tentar ter de Deus o que ele está precisando, e para isso, precisa encontrar Deus em tudo. O fiel começa a consumir produtos que remetem à idéia de ter Deus consigo. Adquire camisetas como mensagens “bonitas” CD´s e livros falando do evangelho, etc. 

E se mesmo assim o indivíduo não encontra a prosperidade? Terrivelmente já está instalado neste indivíduo a culpa. Recai sobre ele, e não sobre os problemas sociais que o envolve, mas tão somente nele o sentimento de não ser amado, e não pertencer dentre os escolhidos por Deus. E por que razão? Porque ele não foi capaz e digno de merecimento. Este indivíduo necessita agora aliviar está culpa. Onde ele vai? Em um lugar que tem pretensões de prometer o alívio do sofrimento. Ai está instalado o ciclo sofrimento – alivio – sofrimento.

Sabemos que o sofrimento é inerente ao ser humano, e que, portanto, não pode ser eliminado, mas dar sentido a este sofrimento. Somente desta forma pode-se escapar do ciclo. Roudinesco(2005).


Referências Bibliográficas


BAUMAN, Zygmunt. “Vida para consumo – A Transformação das pessoas em mercadoria”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

LIPOVETSKY, Gilles. “A Felicidade Paradoxal – Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo”. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

MENDONÇA, A. Gouvêa; VELASQUES Fº, Prócoro. “Introdução ao Protestantismo no Brasil”. 2ª Edição. São Paulo: Edições Loyola e Programa ecumênico de pós-graduação em Ciências da Religião, 2002.

ROMEIRO, Paulo. “Decepcionados Com a Graça – esperanças e frustrações no Brasil neopentecostal”. São Paulo: Mundo Cristão, 2005.

__________ , “Super Crentes – O evangelho segundo Kenneth Hagin, Valnice Milhomens e os profetas da prosperidade”. 2ª ed. rev. São Paulo: Mundo Cristão, 2005.

ROUDINESO, Elisabeth. “Por que a psicanálise?”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.



quinta-feira, 19 de abril de 2012

Errar é humano, repetir o erro é mais humano ainda

Certamente você irá concordar comigo que errar é humano. É bem verdade que pelo menos uma vez na vida nós já repetimos essa frase, ou para justificar nossos erros, ou para consolar quando erram. Agora, consolos e justificativas têm limites, por isso essa frase nunca aparece sozinha, ela vem acompanhada de um anexo que não se dá ao cuidado de se camuflar, ele não é feito as minúsculas letras escritas em arial dois nas propagandas de bebidas alcoólicas, e nas promoções de carros zero km. Imagino que você já tenha pensado qual seria o complemento da frase. – talvez até repetido algumas vezes – Errar é humano, mas repetir o erro é burrice.

Vamos agora imaginar, ou pelo menos tentar entender, o que se passava na cabeça do primeiro ser – que por sinal humano – que proclamou essa ilustre e contundente frase.
Diria ele: Um erro repetido não se justifica, não se perdoa, ele não é digno de misericórdia, concedido uma única vez damos a ele o nome de erro, mas duas vezes passa-se a chamar-se fracasso, desleixo, incompetência, irresponsabilidade, ou outro nome que possa caracterizá-lo como merecedor de apontamentos e acusações. Ora, como podemos suportar a ideia de alguém – que por sinal humano – não ter a capacidade de reconhecer o erro, e, ignorando-o, repete-o? Que humano poderia suportar e conviver com esse tipo de humano? Não há humanidade que resista. Se eu tiver que contratar um ser – que por sinal humano – que seja um “mono-errante”. Se eu tiver que conviver com um ser – que por sina humano – que seja um “mono-errante”

Enfim... Que o ser humano nasça, reproduza, erre apenas uma vez e morra.

Perceba como a frase sorrateiramente perpetua-se como uma espécie de inquisição moral. Ela lentamente encontra espaço nas relações humanas, nas famílias, e, principalmente, encontra um solo fértil e nutritivo, concede plenas condições a uma semente ávida para brotar, solo este chamado capitalismo. Pronto, um casamento perfeito, uma união eterna, um solo onde o humano é desumanizado, um lugar onde o reincidente perde espaço.

Caro amigo leitor, não há nada mais humano do que esta frase, não em seu conteúdo e forma, mas em sua motivação. Somos nós – que por sinal humanos – inquisidores morais por natureza. Ao recitá-la, nos unimos ao mentor da frase, e assumimos nossa plena condição humana. Não há nada mais humano do que desumanizar o outro – que por sinal humano -. Não há nada mais humano do que se apresentar intolerante ao erro e ao fracasso. A culpa, que é o papel onde a frase foi escrita, só tem sentido e se sustenta, se a inquisição moral está presente.

Para suportar a culpa e o erro em nós, fazemos do outro, tão somente o outro, figura ameaçadora. Mas todos nós sabemos que o que se torna ameaçador não é de fato o outro, mas a ideia de que o que o outro tem nós também temos, e não suportamos. Por isso, colocamos o outro na posição de errante culposo. Dessa maneira, a intolerância tira de nós a angustia, angustia esta de saber que podemos também ser igual ao outro que reincide no erro. Ao falarmos que apenas um erro é permitido, criamos uma espécie de consciência coletiva que se espalha na sociedade e incide em nós. Portanto, querido leitor, nos aliviamos e degustamos quando vemos os erros dos outros, mas também isso nos trás culpa, afinal, seria desumano demais tripudiar no erro dos outros. Qual seria a melhor maneira de velar essa culpa? Intolerância!

Para suportar nossa humanidade não há outra saída do que desumanizar o outro. A humanidade do outro é espelho da nossa humanidade, isso nos incomoda. Por fim, qual seria então o alvo da nossa intolerância? Já está mais que respondido. Não toleramos no outro, o que também somos capazes de fazer.


Gustavo Trevisan.




quinta-feira, 12 de abril de 2012

Não contém gordura Trans


Agora sim posso ficar tranquilo, afinal de contas, meu pacote de biscoito não contém gordura Trans, e, meu refrigerante, além de ser Light, é livre de Gluten.

Se você é um daqueles que vai ao supermercado e fica olhando o rótulo dos produtos para se certificar que seu coração resistirá a um pote de pasta de chocolate com avelã, bem vindo ao clube. E se você também é um daqueles, que comenta satisfeito com a pessoa ao lado, que seu chocolatinho não contém Gluten, - mesmo não sabendo o que isso significa, claro, - tentando amenizar a culpa, justificando para você e para o mundo, que, ao colocar um doce e pequeno pedaço no carrinho, os fantasmas da saúde a qualquer custo não irão enviar a tropa de acusadores insanos para pesar a sua consciência, bem vindo ao clube. 

Não precisamos saber o que é Gluten, gordura Trans, e outras coisas mais. O que precisamos saber é que, se existe um aviso na parte frontal do rótulo, e as grandes empresas se submeteram a pressão de imprimi-lo, é por que faz mal. E muito mal. Mas, a generosidade das empresas é tamanha, que, pensando em mim, fizeram um produto livre desses – eu sei lá como dizer – produtos mortais. 

Então... Lançamos mão da razão, conjecturamos, explicamos, claro, em primeiro lugar para nós, que agora estamos a salvo, a gordura que imagino ser ruim, não caminhará nas minhas artérias, meu coração baterá livre e me agradecerá pela oportunidade de ser feliz. Vejam como sou saudável, vejam como amo a vida, vejam... Olhem pra mim... Olhem para meu carrinho, sou um homem feliz, volto pra casa sem culpa, sem sangue em minhas mãos, o que compro, o que consumo, não contém gordura Trans.

E assim, sem saber que o estamos fazendo, utilizamos a razão ao nosso favor, utilizamos a razão para absolver nossos desejos, afinal, somos seres desejantes, e depois – e bem depois, diga-se de passagem - seres racionais, concorda comigo Sr Freud? 

Somos capazes de utilizar a lógica, maquiar o anseio, ludibriar o óbvio, para enfim, ceder aos desejos, que, se não fossem tão bons, não precisariam ser disfarçados.

Seria então a razão detentora dos direitos de uso, e por conseguinte, a majestade a quem todos os joelhos se dobram? Ou o disfarçado desejo, que persuade a razão de maneira tal, deixando a pensar que é dona de si e de todos, mas na verdade, é uma simples serva onipotente do desejo?

Veja que bom! Coma, não contém gordura Trans. Morra sem culpa.

Gustavo Trevisan.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Por que a Psicanálise?



O sofrimento psíquico manifesta-se ultimamente sob a forma de depressão. Atingindo no corpo e na alma por essa estranha síndrome em que se mistura a tristeza e a apatia, na busca da identidade e no preenchimento do vazio de seus desejos. O sofredor não acredita mais na validade de nenhuma terapia. Por isso, passa da psicanálise para a psicofarmacologia.

As facilidades contemporâneas tornou-se uma espécie de ópio social. As promessas de alongamento do tempo funcionam como um chamariz mercadológico, porque, na verdade, o tempo é cada vez mais escasso e penoso.

Quando nos referimos ao tempo, não falamos do tempo “cronos”, que pode ser mensurado e quantificado, nos referimos ao tempo subjetivo, àquele que precisamos significar com nossas impressões e interpretações. E para esse tempo, não há tempo...

Afundamos-nos em atividades vazias, investimos em relacionamentos virtuais desprovidos de autenticidade, gastamos o “cronos”, e assim, perdemos contato com o que nos torna verdadeiramente humanos, a subjetividade.
Como lidar com algo subjetivo que é o sofrimento, e, portanto, humano, no mundo “cronos” e da objetividade? Entregando-nos ao mecânico e acelerado processo da medicina científica, ou de qualquer outra milagrosa promessa de alívio e de paz. É por isso que assistimos, em especial nas sociedades ocidentais, a um crescimento inacreditável do mundinho dos curandeiros, dos feiticeiros, dos videntes e dos magnetizadores, o cientificismo cognitivo, e pseudoautores de teorias psíquicas, um embate dos que valorizam o homem-máquina em detrimento do homem desejante. Afinal, não temos tempo para refletir sobre a origem da infelicidade. É preciso ser rápido. Assim, passamos da era do confronto para a era da evitação, e do culto da glória para a revalorização dos covardes.

Não surpreende, portanto, que a infelicidade que fingimos exorcizar retorne de maneira fulminante no campo das relações sociais e afetivas: recurso ao irracional, culto das pequenas diferenças, valorização do vazio e da estupidez, etc. A violência da calmaria, às vezes, é mais terrível do que a travessia da tempestade.

Nesse sentido, a psicanálise está violentamente contra esta onda. Ela não se entrega a covardia da rapidez, do pronto atendimento psíquico, e da substituição do sofrimento por um alívio sazonal. Não se acaba com o sofrimento fugindo dele, mas enfrentando-o, aliás, não se acaba com o sofrimento, nós aprendemos a sofrer com dignidade, afinal, somos verdadeiramente humanos.